domingo, 26 de junho de 2016

Por Que Avançamos Tão Pouco?*

Fiquei muito feliz com o convite para falar no Encontro Nacional de Estudantes de Direito. Quero aproveitar muito bem a oportunidade, pois é a primeira vez que participo do evento e acredito que será também a última.

Acho que vocês não vão gostar do que tenho a dizer. O tema do painel é “Educação Jurídica: uma análise da realidade brasileira” e, sobre esse assunto, não tenho boas notícias.

Na verdade, ao receber o convite, a primeira coisa que me veio à mente foi um diálogo entre os amigos Carlos e João da Ega, na parte final de “Os Maias”, a obra prima de Eça de Queirós. Os dois foram contemporâneos em Coimbra. Carlos estudara medicina e João da Ega, direito. Depois da formatura e ao longo da vida, criticaram a sociedade de seu tempo e fizeram grandes planos. Nada realizaram, no entanto. Depois de um passeio pelas ruas de Lisboa, Carlos confessou que nos últimos anos não lhe tinha sucedido nada. Ao que o amigo respondeu: “Falhámos a vida, menino”.

Essa é a minha sensação quando olho para a educação jurídica brasileira. Criticamos muito, planejamos imensas reformas, mas não saímos do lugar. Falhamos a vida. Gastamos mal as nossas oportunidades.

E o meu objetivo, hoje, é demostrar porque isso acontece. Quero apresentar as razões pelas quais avançamos tão pouco e tão lentamente. Pensei em apresentar dez tópicos para a discussão. 

1. Discurso sem prática

Em primeiro lugar, gostamos de discurso sem prática. Estamos habituados ao desenvolvimento de uma linguagem politicamente correta e, além disso, apreciamos imensamente as palavras bonitas e as frases bem construídas. Mas nem sempre estamos dispostos a agir em conformidade com o que defendemos. Um professor faz longos discursos sobre democracia, mas não demonstra respeito às decisões dos órgãos colegiados de que participa. Um aluno reclama nas redes sociais sobre as frequentes faltas de um professor, mas não acha estranho pedir ao colega para assinar a lista de chamada.

2. Aparência sem essência

Em segundo lugar, gostamos de aparência sem essência. Escrevemos artigos científicos que não acrescentam absolutamente nada. Na forma, são artigos científicos. Mas, na verdade, não passam de desperdício de tempo, papel e dinheiro. Elaboramos projetos de pesquisa para concorrer a financiamentos públicos cujo principal objetivo é justamente concorrer ao financiamento público e não, como era de se esperar, resolver alguma dúvida consistente. A partir do terceiro ou quarto período do curso de direito, começamos a utilizar roupas mais requintadas, em geral muito pouco próprias para o nosso clima tropical, com o objetivo de causar boa impressão. E para piorar, modificamos lentamente a nossa linguagem, invertendo a ordem das frases, acrescentando artificialmente algumas palavras difíceis.

3. Efeito sem causa

Em terceiro lugar, gostamos de efeito sem causa, ou melhor, gostamos de combater os efeitos sem atacar as causas. Recentemente, vi um anúncio em que a Associação de Universidades de Língua Portuguesa recomendava a utilização de um software para combater o plágio, mas não vi nenhuma iniciativa para debelar as causas desse tipo de conduta. Os professores adotam estratégias para evitar a “cola”, mas nem se dão ao trabalho de perguntar porque ela existe.

4. Crítica sem conhecimento

Em quarto lugar, gostamos de crítica sem conhecimento. O exemplo mais imediato é o do crítico universal, facilmente encontrado nas redes sociais. O sujeito não estuda nada, ouve uma informação aqui e outra ali, mas não tem dificuldade de opinar sobre qualquer assunto, do direito penal à história da religião, da literatura russa do século XIX aos últimos avanços da ciência e da tecnologia. Mas o caso mais triste é o da pesquisa em direito que, via de regra, sugere ao pesquisador que ele pode tratar do seu tema como se fosse o primeiro a cuidar do assunto, completamente desobrigado de se inserir no debate já em curso. Em relação a esse ponto, gosto de pensar em Guimarães Rosa, um dos meus autores favoritos. Ele subvertia a língua portuguesa, sim, mas não por desconhecê-la. Ele só o fazia porque a conhecia muito bem.

5. Quantidade sem qualidade

Em quinto lugar, gostamos de quantidade sem qualidade. O Ministério da Educação pressiona a CAPES, que pressiona os Programas de Pós-Graduação, que pressionam os professores, que pressionam os seus orientandos. Queremos bons números de produção intelectual. Produzimos muito, sim, mas produzimos muito lixo. A quantidade deveria ser o resultado natural de trabalhos bem concebidos e bem executados. Mas, entre nós, acaba sendo o próprio objetivo do trabalho.

6. Emprego sem trabalho

Em sexto lugar, gostamos de emprego sem trabalho. Peço desculpas pela franqueza, mas acho que poucas pessoas procuram os concursos públicos porque realmente desejam trabalhar na área correspondente. O emprego vem antes do trabalho. A remuneração, as regalias e a respeitabilidade do cargo pretendido têm prioridade sobre qualquer ideia de vocação. No caso do magistério jurídico, por exemplo, não é nada difícil encontrar alguém que deseja obter as vantagens de ser professor, mas não deseja se submeter às tarefas próprias do ofício.

7. Conquista sem sacrifício

Em sétimo lugar, gostamos de conquista sem sacrifício. Queremos aprender sem estudar. Queremos uma boa faculdade mas não estamos dispostos a protestar, exigir melhorias e participar da administração acadêmica. Queremos a aprovação no mestrado ou no doutorado, mas preferimos investir nos contatos a obter adequada preparação.

8. Controle sem confiança

Em oitavo lugar, gostamos de controle sem confiança. Em "Direito, Coerção e Liberdade", João Baptista Villela sugere que quanto mais o Estado vigia o cidadão mais o cidadão se sente tentado a transgredir. E nós gostamos de vigilância. O professor vigia o aluno no momento de realização da prova. A Faculdade vigia o professor por meio de duzentos e cinquenta relatórios anuais. A matriz curricular prevê uma quantidade imensa de atividades obrigatórias na suposição de que espaços de liberdade são perigosos. É preciso parar de pressupor que as pessoas sempre farão o que é errado. Em educação, penso que é melhor a confiança frustrada do que a desconfiança no ponto de partida.

9. Vigência sem eficácia

Em nono lugar, gostamos de vigência sem eficácia. Interessa-nos, antes de tudo, ter uma nova lei para dar conta de um problema qualquer, mesmo se não estivermos dispostos a realizar as mudanças necessárias. Acreditamos exageradamente no poder transformador da lei. Esperamos do Direito o que ele não pode nos dar. Se as práticas educacionais nos incomodam, pensamos em aprovar um novo currículo. Mas, sejamos francos, um novo currículo, sem correspodência com as formas de agir e pensar de seus destinatários, é apenas um pedaço de papel.

10. Ousadia sem coerência

Em décimo lugar, gostamos de ousadia sem coerência. Não temos nenhum problema em defender a mais ampla liberdade de expressão quando estamos de acordo com o conteúdo do que foi dito, mas achamos difícil escutar o que realmente nos ofende. Nas atividades pedagógicas, por exemplo, exigimos liberdade e, quase sempre, não sabemos o que fazer com ela.

CONCLUSÃO

Pode parecer, meus amigos, que sou pessimista em relação ao futuro da educação entre nós. Mas não sou. Apenas acredito que não devemos ter medo de mirar o espelho. 

Concluo com uma frase de Richard Foster, outro autor de que gosto muito, pois acho que ela resume bem o que eu queria dizer: 

“A superficialidade é a maldição do nosso tempo”.

* Texto que serviu de base à comunicação apresentada na abertura do XXXVI ENED (Encontro Nacional de Estudantes de Direito), no dia 26 de julho de 2015, na Faculdade de Direito da UFMG.

sábado, 25 de junho de 2016

Professores Universitários e Reprovação Escolar

Ao menos três razões têm impedidos professores universitários de pensar com clareza sobre o fenômeno da reprovação escolar.

A primeira liga-se ao fato de que professores, em geral, são exemplos de estudantes bem sucedidos. As pessoas colhidas pelo fracasso escolar muito raramente se dedicam ao magistério. Sendo assim, porque não sofreram a reprovação na pele, os professores não costumam dar muita atenção ao tema.

A segunda tem a ver com o caráter secundário que o ensino de graduação ocupa na vida de boa parte dos docentes. No caso dos cursos jurídicos, alguns se dedicam com prioridade a outras carreiras, tais como a advocacia e a magistratura. E mesmo entre os que exercem exclusivamente o magistério, há sempre o risco de conferir primazia ao ensino de pós-graduação e às atividades de extensão e pesquisa. Por isso, a escolha dos métodos de avaliação pode ter mais a ver com a quantidade de trabalho que o professor está disposto a encarar do que com a sua inserção no processo de ensino e aprendizagem.

A terceira razão relaciona-se com a ausência de preparação metodológica de grande parte dos docentes. Sem momentos para refletir sobre o sentido e as possibilidades da avaliação, é natural que os professores terminem por utilizá-la apenas como instância de controle e certificação. Nesse contexto, um certo número de alunos reprovados pode até ser visto como confirmação do rigor e da qualidade do trabalho docente.

Há duas razões especialmente dramáticas que, em geral, estão ligadas aos eventos de reprovação no ambiente universitário.

A primeira tem a ver com o adoecimento dos estudantes. Tenho notado que muitos alunos que sentem dificuldade com as estratégias de avaliação passam por algum problema de ordem emocional. 

A segunda relaciona-se com a situação de alunos irregulares que, desvinculados do restante da turma, acabam sentindo dificuldade na realização de tarefas coletivas e na obtenção de informações importantes para o bom andamento do semestre.

Somente depois de muitos anos de exercício do magistério é que adotei uma estratégia deliberada para minimizar as possibilidades de reprovação. No semestre em curso, entre a apuração do resultado das avaliações parciais e a realização do exame final, convidei para uma conversa os estudantes que ainda não tinham obtido aprovação. Escutei a história de cada um deles. Indiquei os pontos da matéria que deveriam ser objeto de especial atenção. Dei orientações sobre os procedimentos e os materiais que poderiam ser utilizados nos momentos de estudo. Cuidei de sinalizar que todos nós tínhamos o mesmo interesse em atingir um resultado satisfatório. 

Ainda não apliquei o exame final. Mas tenho boas expectativas. Na verdade, a ideia de reprovar um estudante sempre me causou desconforto. Mas só agora começo a enxergar possibilidades de intervir antes que isso aconteça.

Quando o médico chega em casa e, muito triste, diz que perdeu um paciente, nós o consideramos um homem sensato. Mas tomaríamos por louco o profissional que comemorasse a morte de uma pessoa submetida a seus cuidados. Do mesmo modo, o professor deve sempre lamentar a reprovação de um de seus alunos. E seria mesmo fora de propósito contar vantagem sobre o elevado número de estudantes deixados para trás num semestre letivo.

quinta-feira, 16 de junho de 2016

Lançamento

Alguns dos textos originalmente publicados aqui no blog agora estão reunidos no livro "A Educação Jurídica Faz Mal à Saúde?".

A aquisição pode ser feita diretamente no site da Editora Arraes.

Boa leitura!

O Professor Caridoso

Há três problemas básicos quando um professor de instituição pública afirma que leciona apenas ou principalmente para “devolver à sociedade um pouco do que recebeu”.

Em geral, a frase é dita por colegas que estudaram na instituição onde lecionam, não exercem o magistério com exclusividade e são bem-sucedidos em outras carreiras, tais como advocacia e magistratura, por exemplo.

É evidente que não há nada de negativo nesses elementos. Ter professores que estudaram na mesma escola é positivo sob vários aspectos, sendo que um deles é a comprovação do sucesso da própria instituição de ensino. Ter professores que exercem outra atividade é fator de notável enriquecimento do ambiente acadêmico. Ter professores que são bem-sucedidos em outras carreiras é elemento que pode provocar estímulo e inspiração nos estudantes.

Mas a frase é problemática, no mínimo, por três motivos.

O primeiro é o sentimento de que a educação é oferecida pelo Estado como favor que, por essa razão, precisa ser retribuído. Mas a educação não é favor; é direito e como tal deve ser experimentada.

O segundo é a consideração do magistério como atividade voluntária, dificultando, desse modo, o aprimoramento das condições de trabalho docente. Mas o magistério não é atividade voluntária; é profissão e como tal deve ser exercido.

O terceiro é o ocultamento dos benefícios auferidos com a atividade acadêmica. Em geral, o mesmo docente que alega exercer o magistério como serviço desinteressado não tem dificuldade de usar o título de professor e o nome da instituição de ensino para obter destaque em outras carreiras, juntamente com o respectivo acréscimo remuneratório.

terça-feira, 7 de junho de 2016

Direito Civil e Literatura de Cordel



Na última aula, meus alunos apresentaram parte do trabalho de Direito Civil em forma de cordel. O assunto era abuso de direito. E ficou simplesmente maravilhoso! Pedi autorização para publicar aqui. Vejam só:

O FRUTO

de Giulia Drummond e Túlio Campos

Aconteceu num dia pra lá de 1900
Numa cidadezinha não-sei-onde
Que ninguém lembra o nome
Nasceu um pé de não-sei-o-que
Brotou, cresceu e deu árvore
Que tinha umas fruta gorda

Era um fruto especial
Sabor pecado original
Mas num é que a tal dessa árvore
Era no meio da terra de compadres
No terreno de João
beirando o de Joaquim

Mas a amizade chegava ao fim
Quando o primeiro fruto brotou
Joaquim logo olhou
O fruteiro era no seu terreno
Mas cresceu entortado um cadim
E assim não ficou mais sereno

O tronco tava desse lado de cá
Mas os fruto dariam pra João pegar
E Joaquim começou a desconfiar
Porque via os fruto nascê e crescê
Mas eles num tavam aqui nem lá
Onde é que eles foram pará?

E de João começou a suspeitá
Que as fruta ele tava roubando
Passava dias olhando
E nunca via o exato instante
Mas de perto ele foi vigiá
Pra pegar ele em flagrante

Mas panela vigiada não ferve
E vigia que dorme não serve
A fruta era tão gostosa
Que Joaquim construiu outra casa
A dois metros da beira
Pra ver mió a fruteira

Ficava pregado no terreno vizinho
Vinte e três horas por dia
Mas quando dormia um cadinho
Num piscar de olhos as fruta sumia
E João ainda achou ruim
Ter outra casa pertim

-Mas comé que ocê faz uma casa
com a janela dando pro meu lado?
Cê tá querendo é me ver pelado!
Seus fruto? Eu que não tô colhendo
Devolva meu ambiente privado
Senão pra Justiça vou correndo!

- Ora, meu é o lote
Então não ficarei ameno
Se tô em direito pleno
De morá onde eu bem entendê
A culpa em mim não bote
se em terra vizinha mora ocê

-Mas, cumpadi, cê não entendeu
Eu num tô nem aí se o direito é seu
Sei que nele ocê se excedeu
Posso ter privacidade
E para tanto bato no peito
Ocê cometeu abuso de direito!

Depois disso veio tranquilidade
Mas de pouca duração
Os frutos continuavam sumindo
Porém nunca caindo
Assim veio outra novidade:
Joaquim começou outra ação

Deu pra construir cerca
Rodeou o terreno de certa maneira
E na hora que chegou na fruteira
Fez uma barriga na grade
Circulando toda a parte
Para que o fruto não se perca

Mas João logo se zangou
Com aquela invasão
Afinal era seu chão
Mas Joaquim não retrocedeu
E falou até o fim:
-O direito de cercar foi dado a mim!

-Mas ora, cê não entendeu
Num tô nem aí se o direito é seu
Sei que nele ocê se excedeu
Também posso ter meu lote inteiro
Conservado e sem defeito
Ocê cometeu um abuso de direito!

Um tempo bom se passou
A briga continuou
mas sem muita inovação
E a geração de Joaquim e João?
Chegou ao fim da reta
Deixando pra trás duas neta

Eram elas Joaquina e Joana
Que continuaram a trama
E Joana jurava também
Que sempre fizera o bem
Jurava que não colhia as fruta
E daí mais uma disputa

Até que num dia Joaquina viu
caíra o fruto no chão
Desesperada, pulou do colchão
Saltou a grade desgastada
E nada recatada (nem bela e do lar)
Pegara a fruta na mão

Joana, quando viu a cena
Se fez em raiva mortal
seu terreno foi invadido, afinal
E o fruto que caiu no chão
A vizinha pegou na convicção
De que fazia coisa legal

Mas Joana na Justiça entrou
E um adevogado veio lá da capital
Pra ver como Joaquina era do mal
Dr. Pomposo era seu nome
Que ouviu todo aquele caso
E disse logo sem atraso:

-Excelentíssimas partes vizinhas
Queiram me ouvir quando proclamo
Confiem em mim; a Justiça eu amo
A dona da razão é Joana
Joaquina saíra da cama
Crendo ser dona; sozinha

-Joaquina, seu avô
Só abusou de direito
Não podia ter gradeado sem freio
Nem construído casa
a quase um metro e meio
E nem você pegado fruto alheio

-Nem o tempo vai te defender
Desde o majestoso Beviláqua
Há de se reconhecer
Que suas ações são abusivas
Minha contratante tem razão
Pra felicidade do meu ganha pão!

Mas suas palavras não adiantaram
As duas vizinhas sequer escutaram
E também nem entenderiam
Estavam distraídas e riam
Descobriram então
A real história e sua solução

Uma família de tucanos nos galhos
Brincava com todas as frutas
Encerrando o caso de atos falhos
De brigas entre figuras incultas
As vizinhas se fizeram amigas
E assim acabava as abusivas intrigas