sábado, 10 de setembro de 2016

Professores Universitários e Aposentadoria

Ao meu amigo César Fiuza que, 
se não me engano, dirá que tudo isso é bobagem.

Talvez não haja muitas profissões em que as pessoas trabalhem sem pensar em aposentadoria. Mas essa é a regra no magistério superior. Em universidades públicas, então, o momento de encerrar a carreira costuma ser indicado, sem muita gentileza, é verdade, pela compulsória.

Já vi isso acontecer um bom número de vezes e, olhando de fora, parece bastante doloroso. 

As causas do sofrimento são variadas: o amor pelo magistério, a convivência com colegas e estudantes, os projetos inconclusos, o costume. Tudo isso me soa bastante natural. Temo que possa me acontecer algo parecido. 

Mas há um fator que pode aumentar dramaticamente o pesar do professor aposentado. Ao contrário dos outros, é um dado negativo. Penso muito nele. Tento evitar que ele me atinja.

Ao longo da carreira, o professor universitário vai colecionando uma série de pequenos poderes. Vagas de mestrado, de doutorado. Bolsas de iniciação científica, de extensão, de monitoria. Uma chefia de departamento, a coordenação de um colegiado. Uma nota baixa, uma nota alta, uma reprovação, uma aprovação. Um parecer, uma assinatura.

Além disso, é provável que, ao longo do tempo, uma pequena legião de orientandos, de antes, de agora e de depois, comece a ter interesse, legítimo ou falso, no que ele diz e no que ele faz. 

O professor corre o risco de acreditar que tudo isso lhe pertence. Nesse caso, a aposentadoria, ao revelar o que era seu e o que era próprio do cargo que ocupava, pode ser especialmente triste. 

quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Você Consegue Chamar os Alunos pelo Nome?

Quanto mais leio sobre educação mais me convenço de que não é possível avançar sem interagir adequadamente com a turma. E não se pode sequer começar antes que o professor aprenda o nome de seus alunos. 

Bom, isso é um problema pra mim. Sempre foi. Por isso, na próxima aula, vou utilizar a técnica que aprendi com o Gabriel Valle, meu querido professor de latim. 

É uma coisa bem simples. E nada tecnológica. No primeiro dia de aula, o professor pedia pra gente pegar uma folha de ofício, na horizontal, e fazer duas dobras, de modo a obter um formato triangular. Depois, numa das faces, a gente escrevia o nome. Em seguida, colocava a folha na carteira, como os mostradores que indicam nomes de palestrantes. Em toda aula, nós éramos convidados a colocar novamente a folha. Como ele sempre chamava cada um pelo nome, chegava uma altura do semestre em que já era possível dispensar o uso das fichas. 

Se alguém quiser fazer o teste, acho que vale a pena pensar em duas coisinhas.

Uma delas é que a experiência só pode funcionar num ambiente de amizade e segurança. Se o professor tiver o objetivo de conhecer para, depois, vigiar e controlar, é melhor esquecer.

A outra é que não se deve deixar de combinar com os "russos". Como todos sabem, na Copa de 1958, depois de ouvir a preleção do treinador, com fartas explicações das estratégias que a Seleção utilizaria para bater a equipe da Rússia, Garrincha teria feito a pergunta: “Mas o senhor já combinou com os russos?”. Então, o professor não pode deixar de gastar um tempinho explicando a razão do uso das placas.

Mas uma coisa é certa. Gabriel Valle utilizava a técnica com maestria. Na verdade, não cheguei a aprender muito de latim, mas nunca pude esquecer que o meu professor me chamava pelo nome.

terça-feira, 6 de setembro de 2016

Direito e Criatividade

Um aluno me perguntou se é possível desenvolver trabalho criativo no cotidiano das carreiras jurídicas. Eu confesso que nunca tinha pensado no assunto. Mas vou logo dizendo que a resposta é positiva. Na verdade, a resposta precisa ser positiva. Se não fosse, eu simplesmente não saberia o que fazer.

A primeira forma de usar a criatividade numa profissão jurídica pode passar pela conexão direta com o campo das artes. De um lado, usando material jurídico como argumento para a produção artística. De outro, usando obras de arte para o embasamento de construções jurídicas. 

No magistério, em suas várias dimensões, também não é difícil pensar em trabalho criativo. No ensino, na pesquisa, na extensão e na administração acadêmica, o professor tem ampla liberdade de buscar soluções diferentes. A cada semestre, tem a chance de cometer erros novos. Só não será criativo se não quiser.

Na advocacia, a palavra que me ocorre com mais naturalidade é conflito. Por isso, penso que será bastante criativo o advogado que pensar em novas formas de resolver conflitos. Há um enorme espaço para isso. A advocacia que fomenta o litígio, e que só se expande quando ele está presente, é uma atividade profundamente doentia. Nos mais variados âmbitos de atuação e em relação aos mais diversos campos do Direito, o advogado pode imaginar formas diferentes de exercer a profissão. O advogado pode ser criativo. Ele precisa ser, na verdade.

Nas várias profissões jurídicas do setor público, incluindo magistratura, ministério público, defensoria, advocacia pública e carreiras policiais, é sempre possível fazer tudo do jeito que todo mundo faz. As rotinas estão estabelecidas. O público-alvo é geralmente o mesmo. Os colegas esperam que ninguém fuja do padrão. Trabalhar muito ou trabalhar pouco não é algo que interfere na remuneração. Em síntese, tudo, absolutamente tudo concorre para a mesmice. A menos que você, ao tomar posse, ainda não tenha morrido. Acho que peguei pesado, né? Vou reformular a frase. A menos que você, ao tomar posse, ainda não tenha renunciado aos sonhos próprios da juventude. Se restar um pouquinho de desejo, é possível fazer diferente. Se o que você buscava era um pouco mais que estabilidade, respeito e boa remuneração, dá pra trabalhar fora da caixa. Nesse caso, a primeira providência deveria ser desaprender. Não acredite que o modo certo de fazer já está determinado. Desaprenda. Depois, pergunte sobre a razão de existir de sua profissão. Sim, pode parecer estranho, mas é uma boa pergunta. Deve haver uma razão para existir o cargo que você ocupa. Tente descobri-la. Se tiver sucesso, pense nas tarefas que poderiam ajudar a atingir os fins desejados. Concentre-se nelas. Não desvie os olhos do que é essencial. Provavelmente você será chamado de excêntrico. É o preço a pagar.

Para terminar, uma ideia. Se o sujeito não tiver vida interior com profundidade e beleza, estou certo de que será sem graça até mesmo se exercer a profissão de repentista. Mas, se tiver algo a dizer, não será possível ofuscá-lo ainda que seu trabalho se resuma a carimbar papéis na mais obscura repartição pública.

segunda-feira, 5 de setembro de 2016

Professores que Fazem Rir e Professores que Fazem Chorar


Os da Minha Rua é um delicioso livrinho de Ondjaki. O texto é cheio de beleza e confesso que, em vários momentos, teve o poder de me transportar para a infância. Mas hoje quero falar de apenas duas crônicas. O que elas têm em comum? Alunos, professores e momentos de forte emoção.

Numa delas, intitulada de O Bigode do Professor de Geografia, o jovem escritor angolano conta um episódio passado em sala de aula, num dia de muito calor. Enquanto o professor fazia anotações no quadro, todos podiam perceber que o suor formava uma mancha escura em sua camisa. Foi quando um aluno disse que o mestre tinha “o mapa de África desenhado no porta-bagagens”. Como era de se esperar, a turma inteira caiu na gargalhada. O professor apenas pousou o giz no quadro e deu uma olhada daquelas de “mandar calar”. Mas, depois de uma segunda provocação, deu-se o temido conflito. O professor deixou o giz cair no chão. Para os alunos, o pequeno gesto já traduzia os “mil pedacinhos do nosso medo”. Em seguida, depois de fechar a porta da sala de aula, proferiu vários impropérios e, entre outras coisas, disse o seguinte: “Pensam que a merda do salário que me pagam aqui é suficiente para vos aturar?”. Para os alunos, “o medo era tanto que ninguém engolia cuspe para não fazer ruído com a bola da garganta”.

A outra crônica chama-se Um Pingo de Chuva. Nela, Ondjaki conta a história do dia em que os estudantes se despediram dos professores cubanos Ángel e María. No pequeno apartamento deles, os meninos logo repararam que a “camarada professora María tinha a cara toda pintada, com exagero mesmo”, pois ela “queria só estar bonita a disfarçar a tristeza dela”. Eles ficaram com medo de que alguém pudesse rir. Mas ninguém fez isso. Até o Bruno, um estudante mais matreiro, “conseguiu controlar-se, não riu nem estigou”. Depois, enquanto o camarada professor Ángel explicava que a missão deles em Angola tinha terminado, os alunos viram a professora María chorar escondida na cozinha e precisaram “fazer força para parar as lágrimas”. Um pouco mais adiante, “o camarada professor Ángel deixou de conseguir falar”. Para o autor, o momento poderia ser resumido assim:

“Nas despedidas acontece isso: a ternura toca a alegria, a alegria traz uma saudade quase triste, a saudade semeia lágrimas, e nós, crianças, não sabemos arrumar essas coisas dentro do nosso coração”.

O professor de Geografia, com seu “bigode dos maus dos filmes”, até que fez a turma rir, mas somente para, em seguida, fazê-la tremer de medo. O bom humor do estudante poderia ter sido utilizado para uma bela lição sobre a África, sua população, seu relevo e seu clima. Mas foi apenas o ponto de partida para uma explosão de raiva, ressentimento e amargura.

Os camaradas professores cubanos estavam se despedindo. A professora María estava com o rosto todo pintado. Em outras circunstâncias, os alunos poderiam rir. Mas eles não riram. O tipo de relacionamento que se construiu entre eles era suficiente para indicar outra reação.

É por isso que eu digo que há professores que fazem rir e há professores que fazem chorar.