sexta-feira, 30 de junho de 2017

Balanço de final de semestre: em defesa do método menos eficaz

Ao final do semestre, estamos todos cansados, professores e estudantes. Mesmo assim, considero importante avaliar o que deu certo e o que pode melhorar. 

Sempre peço aos meus alunos a indicação de pontos positivos, pontos negativos, sugestões e observações, e cuido de esclarecer que o formulário é de preenchimento opcional e pode ser devolvido sem identificação.

Acabei de ler os resultados e gostaria de compartilhar as impressões iniciais.

Antes, preciso dizer como planejei o sistema de avaliação. Basicamente, pedi a elaboração de um plano individual de estudos, de um relatório parcial do desenvolvimento dos trabalhos e de um relatório final. Deixei claro que a nota não dependia do conteúdo dos documentos, mas apenas da realização das atividades a tempo e modo. 

Meu principal desejo era tirar a avaliação do centro do processo de ensino e aprendizagem e deixar que ele se desenvolvesse de forma mais livre e autêntica. Pode parecer uma ideia óbvia, mais eu queria criar condições para que os alunos estudassem para aprender e não para fazer provas. Estou ciente de que foi uma opção radical. Mas creio que tinha de ser assim. Se tivesse incluído uma única prova, dessas utilizadas para medir conteúdo, a experiência ficaria comprometida.

No fundo, o que estava em jogo era autonomia dos estudantes. 

E o resultado, a meu ver, sugere a realização de três movimentos.

O primeiro é o elogio da liberdade. Em geral, os estudantes foram enfáticos na indicação de como se sentiram bem com a liberdade de conduzir o próprio aprendizado. As seguintes frases, extraídas dos formulários de avaliação, podem confirmar a ideia:

“A liberdade nos permitiu montar nosso próprio programa de estudos e a autonomia para efetivá-lo no nosso tempo e do nosso modo”.

“Tive liberdade para conduzir meu próprio aprendizado e, diferentemente de outras matérias, não senti que seria consumida pela pressão”.

“O método adotado foi muito bom, fugindo da maneira tradicional das aulas, e permitindo ao aluno ir em busca do que ele realmente quer, sem força-lo a nada”.

O segundo movimento é a crítica da liberdade. Os estudantes foram igualmente enfáticos na demonstração dos perigos que a liberdade proporciona, como se pode ver nas seguintes frases:

“Tive dificuldades de organizar meus estudos, pois não estou acostumado com essa liberdade”.

“A liberdade também é perigosa, pois corremos o risco de nos acostumar com a falta de prazos e restrições promovidas pelas provas”.

“Senti falta de avaliações tradicionais que têm a função de nos fazer estudar a matéria com mais dedicação”.

“Acho importante ter provas, pois, querendo ou não, a gente acaba estudando mais quando tem avaliação”.

“A falta de cobrança em termos de pontuação gera pouco estímulo para os estudos em casa, principalmente em comparação com outras matérias mais exigentes”.

“Falta de prova deixa o aluno vagabundo”.

O terceiro movimento é o impacto da liberdade. Nos dois anteriores, os sujeitos olham para a liberdade e agem sobre ela, para destacar sua beleza e riscos. Neste último, ao contrário, a liberdade age nos sujeitos.

A experiência da liberdade proporciona, inicialmente, sofrimento. O sujeito, sabendo que podia fazer qualquer coisa, sofre quando percebe que não fez tudo o que desejava. O fracasso, quando verdadeiramente percebido, produz dor, tristeza, arrependimento.

Mas a experiência não termina aí. A liberdade, ao proporcionar sofrimento, permite conhecer os próprios limites, refletir sobre eles, e sair em busca de superá-los. E cada conquista, quando livremente construída, tem valor certo e verdadeiro. As seguintes frases podem comprovar minhas impressões:

“Infelizmente, sempre fomos obrigados a estudar e esta matéria buscou quebrar isso. Entretanto, senti que não consegui acompanhar essa nova perspectiva”.

“Sinto que meu aproveitamento não foi muito bom por falta de comprometimento com meu próprio plano de estudos”.

“A metodologia mostra minhas deficiências como estudante, de modo que, agora, posso trabalhar para saná-las”.

“Eu tenho dificuldades de estudar de forma tão autônoma. Acho que é um problema meu mesmo. Mas estou melhorando”.

“O processo de elaborar o plano de estudos foi enriquecedor à medida que possibilitou autoconhecimento, um termômetro das minhas capacidades e limitações.

“Ao fugir da maneira tradicional das aulas, foi possível refletir sobre meus pontos fortes e pontos que devem ser melhorados”.

“Não ter provas me forçou a ser mais responsável quanto ao estudo e estudar por prazer e não por obrigação, ao contrário das demais matérias”.

Ao final, a análise dos dados me permitiu pensar sobre o modo como estamos construindo o nosso sistema de educação.

E me faz lembrar de uma pergunta, feita no início do semestre, logo depois da apresentação do plano de ensino. Um aluno, muito comprometido com o curso, queria saber se eu considerava que o método proposto era mais eficaz do que as formas tradicionais de conduzir o processo pedagógico. O temor tinha sentido. O método não era eficaz. E o pior é que eu sabia disso. 

De fato, parece que os alunos estudaram pouco. Ficaram mais ocupados com as outras matérias. Guardaram apenas uma pequena parte do que foi discutido.

Mas sabem o que eu acho? Penso que está tudo bem. Viver é muito perigoso.

quinta-feira, 22 de junho de 2017

Educação de crianças e educação de adultos

Um assunto tem me perseguido nas últimas semanas. A primeira vez que ouvi sobre ele foi numa apresentação da Elaine Cristina da Silva, aluna do mestrado em Direito da UFMG. Trata-se da tentativa de comparar professores que cuidam da educação de crianças e professores que cuidam da educação de adultos.

Professores da educação infantil ensinam. Professores universitários, também. Professores da educação infantil esperam que seus alunos aprendam. Professores universitários, também. Professores da educação infantil avaliam. Professores universitários, também.

Mas em qual desses dois contextos, o da educação infantil ou o da educação universitária, é mais provável que a avaliação esteja desconectada do processo de ensino e aprendizagem? Ou que seja utilizada para obrigar estudantes a estudar determinados assuntos? Ou para manter o interesse dos estudantes nas aulas e nas demais atividades? Ou para reforçar a autoridade do professor? Ou para punir estudantes que não tenham se comportado bem?

Em qual desses ambientes é mais provável que a avaliação seja percebida como um fim em si mesma? Ou como algo mais importante que o aprendizado?

Enfim, em qual desses ambientes é mais provável que estudantes sejam tratados como seres incapazes de agir por conta própria?

terça-feira, 20 de junho de 2017

Ponha-se no seu lugar!

Para muitos estudantes, estar numa universidade de ponta é algo tão natural quanto passar férias em Orlando ou frequentar o Minas Tênis Clube. Trata-se de percorrer um caminho conhecido, ter a sensação de estar em casa, fazer o mesmo que já havia sido feito por avós, pais, irmãos, tios e primos.

Para outros, no entanto, a conquista de um lugar na universidade é notícia que se recebe com espanto. Familiares, amigos e colegas experimentam uma nova forma de alegria. De tão extraordinária, a vitória merece ser divulgada e celebrada. 

O encontro de pessoas assim tão diferentes pode ser fonte de inesgotável energia para o ambiente universitário. A inovação costuma florescer em meio à diversidade. Mas o potencial de produzir sofrimento também está presente. É preciso, portanto, reconhecê-lo e trabalhar para reduzir o seu alcance.

Um exemplo pode deixar as coisas mais claras. Para quem estudou inglês em ótimas escolas, conheceu muitos países, e sempre teve incentivo para aprender línguas estrangeiras, pode parecer estranho que haja estudantes universitários que só consigam ler textos em português. Por outro lado, quem não tem a habilidade desejada pode se sentir constrangido, envergonhado e até mesmo culpado. Mas a verdade é que as pessoas carregam histórias e as histórias precisam ser contadas.

Eu sou professor universitário, fiz mestrado e doutorado, e gosto muito do ambiente acadêmico. Mas a primeira vez que pisei numa universidade foi para fazer o vestibular. Como a maioria dos meus amigos, não queria nada além de ser jogador de futebol. Posso contar nos dedos os livros que li na infância e na adolescência. Na minha cidade, não tínhamos acesso a bibliotecas, livrarias, cinemas ou teatros. Fiz quase toda a minha trajetória em escolas públicas. Até o final do ensino médio, imaginava que faria um curso superior não muito longe da minha casa e que, depois, voltaria para ajudar nos negócios da família.

Quando fui aprovado para o curso de Direito na PUC Minas, pensei que era muito mais do que merecia. Para minha felicidade, fiz inscrição para o turno da noite e pude conviver com colegas mais maduros e com trajetórias diversificadas. Não tive dificuldade de adaptação e sempre me senti bem acolhido. Meus pais puderam me oferecer todo o suporte de que precisava. Sempre recebi apoio e incentivo de amigos queridos. Fiz todo o curso com alegria e entusiasmo e tive muitas oportunidades de crescimento.

Mas nem tudo foi fácil. Em muitos momentos, sentia que estava em território desconhecido. Para dizer a verdade, ainda hoje passo por situações de desconforto.

Assim que me mudei para Belo Horizonte, vindo do interior, fui muitas vezes corrigido por meu modo de falar. Aprendi que não se deve dizer que a taça está “meia” cheia, mas “meio” cheia; que não é correto falar que o professor pediu para “mim” fazer a tarefa, mas para “eu” fazer. Hoje, os equívocos podem parecer óbvios, mas não eram naquele momento. Eu falava simplesmente do jeito que havia aprendido. 

No que se refere à produção de textos, ainda no primeiro período do curso, o saudoso professor Jaime França me devolveu uma redação com várias correções. Uma de que me lembro com muita clareza foi a que indicava o erro de escrever “seje” ao invés de “seja”. Sim, eu cheguei à universidade com essas e outras falhas em minha formação básica. 

Também me lembro de que, no meu vocabulário, não constavam palavras que meus colegas usavam com naturalidade.

O caso mais engraçado se deu quando eu fazia estágio na Assessoria Jurídica do Banco do Brasil. Depois do intervalo do almoço, uma colega me perguntou se eu poderia lhe emprestar o “dentifrício”. Como não sabia do que se tratava, disse simplesmente que não tinha. Ela fez cara de quem não gostou. E não era para menos, pois eu acabara de guardar na gaveta uma pequena bolsa com os itens de higiene bucal. A questão é que eu jamais tinha ouvido aquela palavra. Eu conhecia “pasta de dente” e “creme dental”, mas nunca tinha ouvido falar em “dentifrício”. Claro que eu poderia ter perguntado. Mas tive vergonha e acabei fazendo papel de egoísta.

Numa outra ocasião, os colegas me chamaram para comer “trufas” e eu, com medo de não saber lidar com comidas complicadas, fui logo dizendo que não gostava. Eles acharam estranho, mas não insistiram. Só muito depois é que descobri que o convite era para comer chocolates.

Em muitas ocasiões, fiquei constrangido por achar que não sabia me comportar à mesa. Demorou um pouco, mas acabei desistindo de tentar imitar os colegas. 

Mas seguramente o item que melhor simboliza minha falta de preparo para o ambiente acadêmico é a dificuldade com os outros idiomas. Passei por quase todas as franquias de inglês de Belo Horizonte e não aprendi quase nada. É claro que eu já poderia ter superado isso. Mas o fato é que ainda não superei. Não consigo me comunicar em inglês e em nenhuma outra língua estrangeira. Com alguma dificuldade, consigo ler textos em espanhol e italiano. E é só. 

Então, depois de contar um pouco da minha história, volto ao início da conversa. Há pessoas que se sentem naturalmente à vontade no ambiente universitário. Outras se sentem desconfortáveis. E ainda outras se sentem como se não devessem estar ali. E é pra gente desse tipo que eu queria dizer: ponha-se no seu lugar! E o seu lugar é aqui, na universidade, do seu jeito, com a sua cara, no seu tempo, no seu ritmo.

sexta-feira, 16 de junho de 2017

Fazer Direito: uma conversa sobre dificuldades de adaptação ao curso

Dedico esse pequeno texto 
aos alunos dos primeiros períodos 
do curso de Direito da UFMG,
com os quais tenho aprendido muito.

Depois da euforia do ingresso na universidade, costuma surgir um sentimento difuso de insatisfação entre os estudantes. Nas próximas linhas, pretendo falar sobre esse assunto e indicar uma série de fatores que podem atrapalhar o processo de adaptação ao ambiente universitário. 

As ideias podem até ser úteis para outros interessados, mas esclareço que tive em mente os calouros do curso de Direito da UFMG, simplesmente porque conheço melhor a realidade em que estão inseridos.

1. A idealização da experiência universitária

Pode ser bastante hostil o ambiente do ensino médio e dos cursinhos preparatórios. O volume de questões para estudar, o medo da concorrência dos colegas, a cobrança para obter resultados positivos, entre outros fatores, contribuem para o clima de tensão. Ao estudante, resta alimentar a esperança de que, na universidade, tudo vai mudar. Por isso, quando a realidade não corresponde ao sonho, a decepção é enorme. E a frase “serão os melhores cinco anos da sua vida” parece uma profecia difícil de realizar.

2. A falta de um objetivo definido

Por mais cansativa que seja a preparação para o Exame Nacional do Ensino Médio, o estudante tem um alvo claro, definido, estático, que é a aprovação. Na universidade, ao contrário, diante do imenso número de possibilidades, é difícil definir objetivos profissionais. Assim, sem saber aonde quer chegar, todos os caminhos parecem igualmente equivocados.

3. O peso das expectativas familiares

O estudante de Direito pode até não saber o que fazer depois de formado, mas o seu entorno social tem expectativas muito bem definidas. Na grande maioria dos casos, amigos e familiares esperam que os futuros bacharéis se tornem juízes ou membros do ministério público. Eu mesmo, depois de quase 20 anos de formado, ainda escuto coisas do tipo “você não pensa em fazer concurso?” ou “você é tão inteligente para ser só professor”. Quando o estudante é o primeiro da família a ingressar numa boa universidade e quando os pais fizeram grandes sacrifícios para garantir que isso fosse possível, a pressão de entregar ótimos resultados é ainda maior. E muito frequentemente a qualidade do resultado não é medida pela satisfação pessoal que a carreira proporciona, mas pelos níveis de remuneração e status.

4. A experiência de conviver com outros “melhores alunos”

Nas boas universidades, as turmas de graduação em Direito costumam reunir alunos que sempre estiveram entre os melhores de suas classes no ensino médio, sobretudo em matérias como português, história e geografia. Na grande maioria, são alunos que não conviveram com reprovações ou dificuldades de aprendizado. Por isso, pode ser bastante traumático não obter as melhores notas e perceber que há outros gênios ao redor.

5. O clima de competitividade

Muito embora o ambiente universitário brasileiro seja conhecido pelo alto nível de colaboração entre os estudantes, inclusive nos momentos de burlar processos de avaliação, a competição sempre está presente. E para quem ainda não está seguro de seu lugar no mundo, competir não é nada saudável. As boas notas são valorizadas em demasia. Parece ser mais importante obtê-las que efetivamente aprender o conteúdo ministrado. Supõe-se que o sucesso profissional depende mais do desempenho nas avaliações que do desenvolvimento das competências necessárias para cada tipo de carreira.

6. O excesso de oportunidades acadêmicas

Pode parecer estranho, mas o excesso de oportunidades acadêmicas tem o poder de oprimir. Como se já não fosse suficientemente difícil dar conta do básico, os estudantes são bombardeados com convites para eventos, grupos de estudo, processos seletivos e outras atividades “imperdíveis". Recusá-las é conviver com a culpa. E a frase “aproveite tudo o que a Universidade pode oferecer”, proferida com a melhor das intenções, pode ser um peso. 

7. O desafio de morar longe da família

É especialmente difícil cumular a adaptação ao ambiente universitário com a adaptação a uma nova cidade e a um novo modo de viver. O desafio exige uma dose especial de paciência e só poderá ser superado com apoio e orientação.

8. A falta de preparo da universidade e dos professores

Todos os outros desafios poderiam ser minimizados se a universidade e os professores estivessem preparados para enfrentá-los. Mas isso está longe de ser verdade. Ao menos no caso do curso de Direito da UFMG, é seguro afirmar que não há nenhum planejamento na oferta das disciplinas dos primeiros períodos. A escolha dos professores não passa pela análise da adequação de seu perfil ao momento inicial do curso. Não há nenhum diálogo entre professores do mesmo período para a identificação de dificuldades comuns. Ao contrário, cada um cuida de sua matéria como se fosse a única. Com as melhores intenções, muitos utilizam a estratégia de promover o pânico entre os estudantes. Pensam que desse modo podem ajudá-los a compreender que as coisas são diferentes na universidade.  

CONCLUSÃO

Estou ciente de que conhecer um problema não é o mesmo que resolvê-lo. Mas é um passo importante. Nomear as próprias dificuldades contribui para dissipar o sentimento vago e impreciso de tristeza, pensar em alternativas mais saudáveis e fazer escolhas mais conscientes. Também é tranquilizador saber que as angústias são verdadeiras e acometem grande parte dos estudantes. 

Ao final, se eu pudesse dizer apenas mais uma coisa, seria: não sofra sozinho; peça ajuda.

quarta-feira, 14 de junho de 2017

Pedagogia do Sofrimento

“Pedagogia do Sofrimento” é o nome de um livro que ainda não foi escrito. Nele, o processo de ensino e aprendizagem é apresentado como o conjunto das maldades que o professor organiza, cuidadosamente, com o objetivo de ajudar o aluno a perceber que a vida é difícil mesmo. A ideia é explorar ao máximo o valor pedagógico da angústia e da tristeza.

Se o mercado de trabalho é mesmo um lugar duro, cheio de desafios, é preciso preparar os estudantes. E obviamente não há melhor modo de fazê-lo senão reproduzindo cada uma de suas mazelas, didaticamente. 

Para o cumprimento do propósito, a primeira prova tem lugar central. É importante que ela proporcione, desde o início do semestre, algo parecido com o pânico e a ansiedade, e, quando corrigida pelo professor, um misto de revolta e frustração. 

Na sequência do curso, pode ser interessante manter suspense sobre quem será aprovado e quem será reprovado, de preferência, até o último dia de aula. 

De todo modo, o essencial é proporcionar, agora, boa dose de sofrimento, de modo intencional e sistemático, para que, no futuro, os nossos queridos alunos, abandonados à própria sorte, não corram o risco de sofrer. 

quarta-feira, 7 de junho de 2017

Graduação da depressão: o caminho da formatura passa pelo sofrimento?*

Fui procurado por um grupo de calouros do curso de Direito. Eles queriam falar de sofrimento. A ideia comum era de que as aulas e o ambiente da Faculdade não pareciam muito animadores. Ao contrário, sentiam-se angustiados com as falhas administrativas, a infra-estrutura precária, o clima competitivo, as avaliações sem sentido, a desesperança do momento político, a crise econômica e falta de perspectivas profissionais. 

Meu primeiro sentimento foi de perplexidade. Há exatos 21 anos, minha turma de graduação experimentava esse momento inicial com curiosidade e entusiasmo. Tínhamos a vida toda pela frente. Imaginávamos que o curso nos abriria grandes possibilidades.

Mas o que teria mudado em tão pouco tempo? Não posso responder com clareza, mas tenho uma suspeita. Creio que as coisas estão fora de lugar. Tudo bem que não é de hoje, mas o nosso tempo radicalizou os equívocos. 

Perdemos a dimensão terapêutica da amizade. Os relacionamentos humanos costumam ter a profundidade de uma folha de papel. 

Perdemos a capacidade de viver cada experiência de modo pleno. Se estamos em muitos lugares ao mesmo tempo, na verdade, não estamos em lugar algum. 

Perdemos a coragem de fazer escolhas autênticas. Não nos damos o direito de ir mais devagar que os outros e nem podemos parecer menos felizes, belos, inteligentes ou ricos. 

Perdemos a habilidade de apreciar as coisas inúteis. Desprezamos as atividades que não geram resultados imediatos. 

Perdemos a curiosidade pela busca de um propósito mais elevado. Compramos a ideia de que é só isso mesmo: nascer, viver, morrer; estudar, trabalhar, festejar. Mesmo contra todas as evidências e contra o nosso mais íntimo desejo de sentido, fomos ensinados a sacrificar nossas esperanças no altar da ciência. E sejamos francos: pobre da ciência que promete mais do que pode entregar! Falsa a ciência que faz afirmações sobre temas que estão além de seu escopo e cuja compreensão escapa aos métodos que lhe são próprios!

Mas se as coisas realmente estão fora do lugar, o que isso significa?

Significa, antes de tudo, que o desconforto é verdadeiro, que a angústia não é frescura, que o sofrimento tem razão de ser.

Se o mundo enlouqueceu, loucura mesmo seria achar que vai tudo bem. 

Mas como fazer para que o sofrimento não vire uma forma diferente de loucura? Em outras palavras, como fazer para que, fugindo da loucura da falta de sensibilidade, não sejamos aprisionados pela loucura do excesso de sensibilidade?

Sim, porque é loucura achar que tudo vai bem e que todos os pontos de apoio são igualmente válidos. Mas também é loucura achar que nada vai bem e que nenhum ponto de apoio pode ser encontrado. No primeiro caso, loucura da falta de sensibilidade. No segundo, loucura do excesso de sensibilidade.

Apesar de frequentar a terapia há bastante tempo e de ter iniciado recentemente o uso de medicamentos para depressão, não tenho nada a dizer sobre saúde mental. Posso até ser meio louco, mas reconheço que não poderia falar do tema com propriedade.

Aliás, é bom deixar claro, desde logo, que deveriam procurar ajudar profissional as pessoas que apresentam tristeza persistente, acentuado desânimo para atividades do cotidiano, pensamentos de autodestruição, além de outros sintomas do mesmo tipo. Somente médicos e psicólogos estão habilitados a fazer uma boa avaliação e sugerir tratamentos e intervenções medicamentosas. E já passou da hora de dar um basta no preconceito contra esse tipo de auxílio profissional. O medicamento para o controle da depressão não é de um tipo especialmente diferente daquele usado para controle da pressão arterial, por exemplo. A principal diferença, na verdade, reside no preconceito que teima em persistir. 

De todo modo, para oferecer alguma contribuição ao diálogo, uma vez que vocês foram tão gentis ao me convidar, vou lançar mão de um argumento de Chesterton, jornalista e escritor britânico, apresentado logo no início de sua monumental “Ortodoxia”.

A ideia é muito simples. Para ele, loucura não é falta de pensamento. É o seu excesso. Para combatê-la, não faz sentido sugerir o bloqueio dos pensamentos ruins, mas a sua substituição por pensamentos mais saudáveis. Mais ou menos como abrir janelas numa casa fechada.

Em suas palavras:

"Assim sendo, se o leitor ou eu tivermos de lidar com uma mente que esteja a tornar-se doentia, a nossa principal preocupação não há-de ser fornecer-lhe argumentos, mas arejá-la, convencê-la de que há coisas mais limpas e mais frescas no exterior daquele sufoco que é o argumento único" (CHESTERTON, 2008, p. 25).

Assim, para abrir a mente, sugiro a possibilidade de pensar em alguns tópicos, divididos em três campos.

I. Uma questão de escala

Pode ser interessante começar com a questão da escala. Precisamos nos esforçar para dimensionar corretamente as coisas e os eventos e dar a cada um o valor apropriado, nem maior nem menor.

1. O Curso é maior que o Primeiro Período

O Primeiro Período pode ter suas angústias, mas o Curso é maior que o Primeiro Período. Há muita coisa pela frente. Para os que não vêem sentido em tantas disciplinas eminentemente teóricas, tenham paciência. Elas são importantes para a compreensão de tudo o que vem na sequência. Para os que estão ansiosos pelas disciplinas mais práticas, fiquem tranquilos. Elas já estão chegando e existem em grande número. Para os que ainda não conseguiram fazer três estágios, cinco monitorias e sete iniciações científicas, calma, muita calma. Há tempo pra tudo isso.

2. A Faculdade é maior que o Curso

O Curso pode ter suas chatices, mas a Faculdade é maior que o Curso. A Associação Atlética Acadêmica promove os melhores torneios estudantis. Toda semana temos ao menos um evento interessante. Do tanto que sei, não há escassez de festas e eventos culturais. A oferta de atividades de pesquisa e extensão também se dá em grande número. Além do mais, nas salas de aula e nos corredores, há uma infinidade de pessoas interessantes.

3. A Universidade é maior que a Faculdade

A Faculdade pode ter suas mazelas, mas a Universidade é maior que a Faculdade. Você tem interesse em psicologia? Curse uma disciplina no Departamento de Psicologia, procure um grupo de estudos ou converse com colegas da área. Gosta de cinema ou teatro? Faça atividades na Escola de Belas Artes. Pensa em se aventurar no mundo dos negócios? Vá atrás de cursos e eventos oferecidos pela Faculdade de Administração e Ciências Econômicas. Enfim, aproveite tudo o que a Universidade pode oferecer.

4. A Vida é maior que a Universidade

A Universidade tem seus pontos fracos, mas a Vida é maior que a Universidade. Os cinco anos do curso de Direito não podem funcionar como uma pausa em todas as outras atividades. A vida acontece em qualquer lugar, inclusive na Universidade. É um erro considerar que tudo que é importante deve passar pelo ambiente acadêmico. 

II. Uma questão de contexto

Também pode ser interessante contextualizar a experiência de estar na Universidade. Frequentar os bancos acadêmicos não é o único caminho para a felicidade. E nem mesmo para a realização profissional. Todos os que estão aqui tiveram a oportunidade de chegar ao ensino superior. Mas é apenas uma oportunidade, que não define ninguém, nem para garantir o sucesso aos que a puderam obter, nem para negá-lo a todos os outros.

1. Tem gente que nunca começou um curso (e é feliz)

Não é difícil lembrar de pessoas que não puderam frequentar a Universidade e tiveram sucesso em suas profissões. Os momentos formais de aprendizagem simplesmente não podem conter a imensa capacidade humana de aprender. Com criatividade e persistência, o ser humano pode abrir caminhos que nem sequer haviam sido imaginados e que, portanto, jamais poderiam ser ensinados.

2. Tem gente que nunca concluiu um curso (e é feliz)

É impossível contornar os exemplos de Bill Gates, Steve Jobs e Mark Zuckerberg, que não chegaram a concluir seus cursos universitários e, apesar disso ou, quem sabe, por causa disso, tiveram enorme sucesso em seus empreendimentos profissionais. Concordo com são casos atípicos. Mas servem para nos avisar que abandonar o curso é uma opção. Ninguém pode ser obrigado a seguir um caminho que não faz sentido e que só traz sofrimento. 

3. Tem gente que trocou de curso (e é feliz)

Também é possível lembrar que o problema pode não ser a vida acadêmica, mas apenas o curso escolhido. Decisões tomadas aos 15, 16 ou 17 anos não deveriam ser definitivas. Mudar de curso também é uma possibilidade a ser considerada.

4. Tem gente que concluiu o curso e foi trabalhar em outra área (e é feliz)

Nesse ponto, permitam-se recorrer a exemplos caseiros. Tancredo Neves, Ziraldo e Fernando Brant concluíram o curso de Direito, mas exerceram suas vocações na política, na literatura e na música, respectivamente. Seria possível dizer que foi inútil o tempo que passaram aqui? Certamente que não. Aprenderam na Faculdade muito do que levaram para a vida. É provável que mais nos corredores que nas salas de aula, mais com os colegas do que com os professores, mais sobre o mundo do que sobre o direito. Mas aprenderam aqui. Estiveram sentados nos mesmos lugares que vocês ocupam. 

III. Uma questão de estilo

Mesmo com a enorme pressão para que todos sejam iguais e construam sua trajetória acadêmica no mesmo ritmo, é bom meditar no assunto. E aceitar a diferença. Mais do isso, celebrar a incrível diversidade humana.

1. Tem gente que anda devagar (e é feliz)

Tem gente que anda rápido, mesmo sem saber aonde ir. E tem gente que anda devagar. O bom é que cada um encontre o próprio ritmo. E melhor ainda se souber aonde vai.

2. Tem gente que foge do padrão (e é feliz)

Tem gente que segue o padrão, mesmo sem ter pensado no assunto. E tem gente que foge do padrão. O bom é que cada um escolha como conduzir a vida. E melhor ainda se tiver coragem de viver as coisas que fazem sentido para si.

3. Tem gente que precisa de uma pausa (e é feliz)

Tem gente que faz uma coisa atrás da outra, mesmo com grande sacrifício pessoal. E tem gente que precisa de uma pausa. O bom é que cada um conheça seus limites. E melhor ainda se souber aproveitar cada momento.

4. Tem gente que muda bruscamente (e é feliz)

Tem gente que faz sempre a mesma coisa, ainda que não se realize jamais. E tem gente que muda bruscamente. O bom é que cada um se sinta confortável onde está. E melhor ainda se estiver em busca de seus verdadeiros sonhos.

Conclusão

Para concluir nossa conversa, retomo Chesterton. Diz a lenda que, ao ser perguntado por um jornalista sobre que livro levaria para uma ilha deserta, ele teria respondido: “O Guia Prático do Construtor de Barcos”. Lembro-me de um aluno que, ao responder a mesma pergunta, para espanto de toda a turma, disse que levaria “Como Fazer Amigos e Influenciar Pessoas”. Não que isso seja ruim. Na verdade, é muito bom. O problema é que não dá pra fazer amigos numa ilha deserta. Daí a loucura da sugestão do meu aluno e a beleza da sugestão de Chesterton. Um livro não é companhia suficiente para a vida. Nenhuma alegria faz sentido se não puder ser compartilhada. A verdadeira amizade é um auxílio precioso em tempos de sofrimento.

Então, para terminar, de verdade, ofereço-lhes um pequeno trecho de “Canção da América”, música composta, em inglês, por Milton Nascimento e Fernando Brant e, posteriormente, colocada em vernáculo por este, que é um colega de vocês, de outra turma, sim, mas um colega de vocês, que já esteve sentado aí nesses bancos:

“Amigo é coisa para se guardar,
debaixo de sete chaves,
dentro do coração”. 

Referência bibliográfica

CHESTERTON, G.K. Ortodoxia. Trad. Maria José Figueiredo. Lisboa: Alêtheia, 2008.

* Texto que serviu de base à comunicação apresentada aos alunos do primeiro e segundo períodos do Curso de Direito, na Faculdade de Direito da UFMG, em 7 de junho de 2017.